segunda-feira, novembro 21, 2016

O teu choro

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O teu choro abarca todas as despedidas
fazendo o céu descer até aos nossos ombros
como se de repente anoitecesse.

o teu choro 
a tua dor parada nos olhares que ficaram
abraços cujo rasto se perdeu
a própria chuva 
escorrendo das árvores que nunca partiram.

Mãos despidas se levantam para dizer adeus
corpos quietos no coração do frio
pés presos a nada
como se amanhã fosse outro dia.

Outra noite 
o mesmo olhar que fica 
o mesmo sentimento 
mãos dentro das nuvens
e das asas molhadas dos pássaros
mãos agarradas ao vento
como se amanhã fosse outro dia.



#48. Fragmento de fotografia (Victor L.)

quinta-feira, dezembro 18, 2014

Despedida

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Este é o dia
para percorrer os caminhos
que as tuas mãos abriram
até à minha porta.
Desses caminhos e do manto que teceste,
o manto onde guardavas a memória,
permanece o rasto que as tuas mãos deixaram
e duas ou três árvores cobertas de neve. 
Permanece a tua voz no princípio da terra
e nos muros altos dos antepassados
um leve bater de asas.



#47. Fragmento de fotografia (Anónimo, déc.1930.)

quinta-feira, outubro 21, 2010

Vestígios

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Ela andava pelos sítios
como se estivesse parada.
Tropeçava nas casas que queriam habitá-la
e o olhar errava para lá das janelas
à procura de vestígios do seu nome.
Pouco a pouco foi partindo
como tinha chegado, à pura sede,
com ninhos de andorinha a cair dos beirais,
sem outras emoções. Nómada, foi viver
noutros lugares.
Chora ainda de fora
para dentro e quando passa pelas casas,
tropeçando, as janelas abrem-se sozinhas,
em silêncio, com a mansidão das mães.


#46. José Pedro Croft, fragmento de instalação (esculturas).

quinta-feira, maio 27, 2010

Lucidez

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Quem ficará suspenso desse olhar

quando as nuvens transitórias

dissiparem
a exactidão das formas,

quem recordará o riso

as pontes altas do sonho

os corpos descampados

as palavras perdidas.

Quem por essas mãos caminhará

dentro da madrugada,

que rasto guardará a lucidez.



#45. René Magritte, fragmento de pintura.

segunda-feira, março 15, 2010

Perigo

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Ele está num sítio só de sons
e compreende o fim da inocência.
Sente aquele olhar desviar-se do seu
e sabe que algo morre.
Um pressentimento percorre-lhe a memória
e por momentos pensa que cegou
estando como está num sítio só de sons.
Diz para si
que de nada serve temer o perigo
e deita-se ao longo do medo.
Uma força
de súbito sobe medo acima
virando-lhe o corpo para o lado do vento.
Ele deixa que o vento o levante
e o leve.


#44. José M. Rodrigues, fragmento de fotografia.

quarta-feira, outubro 28, 2009

Sopro

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Às vezes não se sabe
o que é longe, o que é perto
que diferença faz
se as estradas parecem infinitas
se os muros
parecem encostados
aos espaços que se abriram
nos teus olhos.
Que diferença faz
se as árvores soltas à vastidão do vento
ainda transfiguram o rumor do ar,
esse som da infância imaginada.
De que serve saber
se o vulto que se move sobre os muros
convoca em ti o verdadeiro olhar
como se pressentisse o esquecimento.

Talvez seja apenas um vulto casual
atravessando a tua tarde pobre.


#43. Giovanni Bellini, fragmento de pintura.

terça-feira, setembro 15, 2009

Ainda

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Silêncio,
a casa ainda guarda os sítios do silêncio,
caminho dentro dela em pensamento
e encontro à minha volta a tua ausência.

Medo,
solto-me do medo e digo para mim
que os teus passos mansos permanecem,
vejo na janela a luz da lua
e digo que é um rasto de infinito.


#42. Lucio Fontana, fragmento de pintura/objecto

sexta-feira, agosto 07, 2009

Ar

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Não trago prendas hoje
talvez traga
outro dia qualquer
não trago prendas
para te prender
és sempre tão livre,
ao abrir as portas altas
talvez nem te veja no lugar,
rodeada de livros
e de linhos bordados
talvez nem te veja
pouco importa, estás
em toda a parte
como o ar,
talvez traga prendas
outro dia qualquer.


#41. Henri Fantin-Latour, fragmento de pintura.

domingo, julho 12, 2009

Rua chã

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Pensamento vagabundo vai.
Se encontrares uma rua chã,
entra no silêncio
que
por dentro selou todas as portas.
Demora-te à escuta dos sons antepassados
sobrevoa as casas sobrevoa as próprias aves
olha devagar as sombras
altas.
Enfrenta o mistério dos espelhos,
pensamento vagabundo segue.
Suporta a insuportável lucidez dos órfãos,
os seres que foram tocados, digo assim,
pela luz rasante das terras antigas.
Sobrevivem agora no meio da multidão,
na cidade longínqua.

Mil anos passaram
e os olhos dos órfãos já não se reconhecem
algures na rua tão perto da dor.


#40. Victor L., fragmento de fotografia.

sexta-feira, março 27, 2009

Agora

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Hoje quero lembrar
as estradas percorridas
entre a terra e o céu e o sonho,
isto aconteceu
quando havia infinito.
O chão era chão
eram nossos os passos
e mesmo o silêncio
consistentemente entretecia
a força da palavra.
Não havia casas sem janelas
nem portas vedadas ao frio dos teus ombros,
isto aconteceu
quando havia infinito.
Agora há o tempo,
as árvores partiram com os pássaros.
Todas as noites nos levam
para longe das estradas
e dos livros que morreram.
Todas as noites a lua
ilumina o lugar que ficou.


#39. Vittore Carpaccio, fragmento de pintura.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

De noite

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Enfrentas os olhares
com o teu sorriso de presença,
rosto virtual do teu anonimato,
a máscara do medo.
Talvez por isso chores quando chove
e o céu pesadamente se transforma
no telhado opaco da paisagem.
Talvez por isso grites
no silêncio das noites,
como se escorresse chuva
do teu próprio peito.

Dorme,
deixa o pensamento flutuar
na memória dos sons.



#38. Hans Hartung, fragmento de desenho.

quinta-feira, dezembro 04, 2008

Passos

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Atravesso outra vez estas portas
à procura da sombra longínqua
que havia nas searas
e nos olhos voltados para sul,
atravesso os ventos
em direcção ao princípio das coisas
sem saber que coisas são,
talvez lugares
ou seres parados a meio do caminho
rente aos séculos das árvores.
O pensamento desce até ao chão
onde o som dos teus passos permanece
pedra a pedra enfrentando o silêncio.



#37. Mark Rothko, fragmento de pintura.

terça-feira, outubro 21, 2008

segunda-feira, outubro 20, 2008

Disse

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Eu disse sem esforço
a palavra remota
e a barca emergiu da maresia
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Dolorosa ternura
na distância das serras caladas,
uma sombra suspensa para toda a vida
e em cada noite
a tua mão tão pura.


#36. Anónimo (c.1900), fragmento de fotografia.

sábado, outubro 04, 2008

Ponte

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Vem de longe o teu medo
em tão alta torre recolhido, tu dizes
que não sabes viver ao pé de ti, mas repara
na amplitude das pontes quando aceitas
os gritos que te cercam,
a tenebrosa noite.
Repara nos filhos que te dão à luz
pela permanência de uma pétala,
uma pétala apenas
da flor que recita o teu caminho.


#35. Fernando Lemos, fragmento de fotografia.

sexta-feira, setembro 12, 2008

Ela

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Ela abria as asas
de manhã
para voar ao sol por cima dos telhados
e eu pensava que os anjos

eram aves que voavam como ela.

Nas varandas o seu riso cintilava

com o céu por cima parecia deusa

mas também chorava e parecia louca

e de noite lia grandes livros
talvez morassem sábios dentro dela.


Quando a neve lhe cobriu o peito

ela estendeu-se ao longo dos caminhos
quase rainha num trono rente à terra

e eu vi folhas de vida, digo assim,
a desprender-se dela
árvore ao vento

onde de repente anoiteceu.


#34. Manuel Zimbro, fragmento de pintura.

domingo, agosto 17, 2008

As casas

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De noite as casas saem dos esconderijos,
curvam-se sobre a solidão dos seres
e os seres correm desvairados
gritando inocência.
As casas atiram o silêncio contra a noite,
rasgam as páginas dos livros sagrados
e no fundo insuportável dos corredores
os seres solitários
começam a abrir os braços lentamente
e a visitação desce sobre eles
e então as casas sossegam
para guardar a luz mansa de outros seres
que nelas renasceram para sempre.


#33. Johannes Vermeer, fragmento de pintura

segunda-feira, julho 14, 2008

Rasto

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Viemos de longe
e não soubemos lavrar as terras
em que os teus olhos se deitaram.
Não colhemos um só ramo de roseira
enquanto percorremos o teu rasto,
enquanto procurámos os teus passos
no mistério das pedras. E eu pergunto
quem resgatará o sonho que o menino chora,
quem abrirá as portas à breve sombra
do gato que chama da infância,
quem passará mil noites
à escuta de tão manso respirar.


#32. Rui Chafes, fragmento de escultura.

domingo, maio 25, 2008

Vidro

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Ela sorria através do vidro baço,
a chuva a bater-lhe no pensamento aberto
das estradas.
Na outra margem da memória
o homem encostou-se ao olhar dela
e a voz infinita
atravessou a chuva: mãe,

porque me olhas assim?

No deserto de água o homem
a olhar e a sorrir,
a mulher a recolher-se aos olhos dele
e a voz solitária da viagem
a crescer dentro da chuva: filha,
porque me esperas assim?


#31. Giorgione, fragmento de pintura.

domingo, abril 27, 2008

Dia

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De súbito os sítios não estão onde estavam,
o tempo que se perde antes de olhar
as casas pouco a pouco tão secretas.
De tudo o que ficou pelo caminho
o pensamento guardou algumas vozes,
a claridade dos primeiros muros
onde o vento que vinha de longe
se demorava na nitidez dos sons.
Folheados em noites distantes
só os livros permanecem nas casas
como estátua pura,
rastos de luz a percorrer o dia.


#30. Joaquim Bravo, fragmento de pintura.

domingo, março 09, 2008

Sei

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Sim, guardo os séculos
que os teus dedos teceram.
Conservo as tuas flores
nas casas decepadas,

varandas atiradas contra o vento,

portas abertas à terra
à nascente dos rios
aos caminhos
que os teus passos percorreram.


Sei agora que nunca morreste,
vejo os teus olhos antigos de menina
adormeço no teu vestido frio.


#29. Laszlo Moholy-Nagy, fragmento de fotografia

segunda-feira, março 03, 2008

Mater

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As crianças quando nascem
vão morar no alto
dos pássaros e dos ramos
das árvores grandes
que tornam infinitos os jardins.


Por vezes as crianças

descem às nossas sombras
para nos confiar leves segredos.
Se ouvires o que diz o riso delas
sentirás o vento
que dança no cimo do mar.

Se olhares a luz que te procura
pede à luz uma flor.


#28. Joachim Patenier, fragmento de pintura.

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Memória

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Ao terreiro deserto desce a lua
estende no chão
a verdade tão pura
tão inesquecida.
Mãos sozinhas
cavaram o caminho
por dentro
das trevas
ergueram a voz
que a palavra esperava.
Um anjo
pareceu atravessar
o curto instante,
afrontou talvez
o esquecimento.


#27. Cima da Conegliano, fragmento de pintura

sexta-feira, janeiro 04, 2008

Uma sombra

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Uma sombra
ocupa o vasto colo
que ousou calar o riso
noutro colo
à beira das praias primitivas.
Sombra espessa
e no entanto
um rasto cintilante
parecia trespassar a noite
desde o tempo das palavras fundas,
uma pétala solta
no espaço sem chão.


#26. Man Ray, fragmento de fotografia.

segunda-feira, novembro 19, 2007

Silêncio

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Sitiados pelo pensamento longo
tropeçamos
desajeitadamente nas arestas
da palavra,

atiçando o som inabitável
esse grande escriba do deserto.

Não há sol que chegue até aqui,
repara,
não sabemos das árvores
nem sequer do calor das tuas mãos
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Procuramos de noite

o silêncio dos gatos,
último refúgio dos órfãos.



#25. Jackson Pollock, fragmento de pintura.

domingo, outubro 21, 2007